sábado, 11 de abril de 2020

A Peste. 2024. Parte 7.

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A Peste. 2024.
Parte 7.

Jorginho não conseguiu tomar coragem para encarar a rua novamente ate uns dez ou doze dias depois da sua primeira tentativa.
Saiu direto para a casa da Ana Lúcia, prima de Roberta, que sem dúvidas poderia ter alguma notícia ou informação sobre sua amada.
Apalpou a Taurus 38 que havia colocado nas costas, debaixo da jaqueta e com quatro balas no tambor.
Não havia andado nem duzentos metros quando um homem pulou de dentro de uma porta e lhe apontou uma faca no pescoço. Muito lento pela falta total de costume em lidar com uma arma, Jorge tentou puxar o revólver, mas o assaltante foi mais rápido, seguramente por ser mais experiente, notou o movimento e exigiu que lhe entregasse a Taurus.
Entregou, e na hora se deu conta que o ladrão era um dos guardas do Ministério que o haviam enquadrado na primeira saída.
Já quase se sentindo mais seguro ao comprovar a identidade do assaltante, Jorginho perguntou o óbvio: ––E por que mudou de lado, se me permite? ––Por dinheiro, claro, ganho mais assim que com o salário de guarda de segurança pública.
Já quase se sentindo mais seguro ao comprovar a identidade do assaltante, Jorginho perguntou o óbvio: ––E por que mudou de lado, se me permite? ––Por dinheiro, claro, ganho mais assim que com o salário de guarda de segurança pública.
Sem mais palavras, se afastaram um do outro, mas não tinham passado nem cinco minutos quando o assaltante reapareceu:
––Escuta. Quero propor a você o seguinte: eu devolvo a sua arma a troca de um pouco de comida e algum dinheiro, se tiver. Vamos! Jorginho não tinha alternativa, e a proposta era boa. A arma era cara e também representava sua única segurança em tempos tão tenebrosos.

O curioso episódio ficou dando voltas na cabeça do Jorge até virar um pequeno conto. Sim, porque Jorginho era escritor.
Não era o que chamaríamos de um “escritor de sucesso”. Havia parado de tentar publicar um romance que vinha escrevinhando durante os últimos nove anos quando, depois de seis ou sete apresentações em concursos literários viu que ninguém se interessava por aquele seu texto, justamente o que ele considerava o mais importante e definitivo da sua carreira.

De fato, já tinha escrito e publicado bastante: foram crônicas, contos, alguma poesia, e um par de mini romances para a revista “O Novo Cruzeiro”, que fundara em 1994 com dois colegas do folheto cultural “ProHispam”, da qual tirava seus magros salários fixos. Pobres, mas garantidos e seguros salários a cada quinzena.
Trabalhou também como cartunista, completando mais de 190 publicações em diversos jornais e revistas de São Paulo, Juiz de Fora, Santa Maria de Rio Grande do Sul, e Campinas, entre crônicas, contos, romances e quadrinhos.
E ainda escreveu para a televisão a série “Planeta das Mulheres”. Em 1998 lançou sua primeira peça teatral, “Uma mulher desnuda ao sol”, e com ela ganhou o Prêmio Camões Jovem.
Depois passou mais de dez ou doze anos opacos e abúlicos, rabiscando no Blog Carpindo, onde reuniu suas crônicas, e chegou à marca de um milhão de visitantes. Mas, embora premiado, muito lido no seu blog, e autor de treze livros, Jorge Sánchez era consciente de que nunca passou – e provavelmente não passaria- de um escritor medíocre
Na realidade, ele era um técnico formado aos 21 anos em meteorologia, que mais tarde foi administrador de empresas, professor particular de inglês, de datilografia primeiro e de informática depois; e, nas horas vagas – que eram muitas–, um especialista em futebol brasileiro. Em síntese, um eclético total.
Nos últimos dois anos, até uns poucos meses antes da primeira onda da grande pandemia em 2020, e deprimido pela rotina do trabalho e pelos sucessivos fracassos de crítica das suas obras, Jorge caiu numa depressão que o confinou durante meses a fio na frente das telas da Netflix, alternando apenas com as palavras cruzadas e os intermináveis quebra-cabeças. Enquanto isso, trabalhava como jornalista free-lancer, escrevendo sem nada de vontade algo de ficção adulta e juvenil por encomenda, e fazendo roteiros eventuais para o cinema, ou atuando como consultor no canal de TV mais conhecido – e o mais criticado- do país.
Foi nessas circunstâncias que, numa viagem curta a Espírito Santo, conheceu Roberta, de quem se apaixonou, e que sem motivos aparentes o abandonou repentinamente, poucos meses e muitas conversas depois.
Roberta e Jorge tiveram semanas de entusiasmo mútuo, gastando horas do dia e da noite em longos papos por telefone, e até por cartas enviadas e recebidas a cada dia pelo correio. Falavam de literatura, é claro, e ele pensava que a seduzia com os seus muitos conhecimentos superficiais de tudo, sobretudo da prosa anglo-saxã que tanto obsessionava a Borges, outro dos seus temas preferidos.
Roberta insistia em não avançar no relacionamento, em não abrir espaços para o amor e muito menos ainda para o sexo; ela tinha medo de ser magoada; ficava apavorada pela ameaça de ser rejeitada, dizia, e falava dos sofrimentos com a mãe e o pai.
Mas foi ela quem finalmente o rejeitou, não sem antes dar-lhe uma boa oportunidade para ele cair rendido aos seus pés, e ela se revelar como uma insensível sedutora.
Roberta o deixou de quatro – literalmente – depois de lhe oferecer os beijos, as carícias e o sexo mais delicioso que Jorginho nunca tivesse imaginado na sua vida.
–– Foi ridículo- disse ele. –– Um dia qualquer, semanas depois de nosso primeiro encontro, que durou seis dias e cinco noites, liguei para falar apenas um oizinho, e ela me disse que estava embarcando para São Paulo e que passaria em Congonhas em um par de horas, rumo a Curitiba.
Jorge achou estranho o fato de ela não ter lhe avisado antes, mas, mesmo assim, largou tudo o que estava fazendo no seu birô editorial em Guaianazes, e pegou metrô e dois ônibus para chegar à zona sul de São Paulo, esquecendo três clientes na sala de espera, em pleno expediente, a mais de 40 km de onde pensava encontrar a sua amada. E a encontrou, sim, mas depois de esperá-la durante meia hora para, em menos de quinze minutos e café expresso mediante, separar-se com um longo beijo frio – da parte dela - que o deixou sem chão.
–– Nunca me senti tão pateta – repete Jorginho, ainda lembrando da frieza repentina de Roberta.
–– Mas tudo tem uma compensação na vida, e também nada acontece por acaso. Foi na saída de Congonhas, mais afundado na depressão ainda do que já havia estado nesses últimos meses que, distraído, quase derrubou uma jovem mulher que entrava apressada ao hall principal do aeroporto carregando desajeitadamente uns cinco ou seis livros.
–– Caíram todos no chão e me apressei a recolhê-los – diz Jorge-, e nesse momento a minha vida mudou, pelo menos a minha vida literária, por completo-.
Um dos livros espalhados no chão era “O fusca amarelo”, da sua autoria, e um dos títulos menos conhecidos no mercado embora mais trabalho tivesse tido Jorge para escrever, editar e vender; outro dos seus fracassos literários, digamos.
Mas Marta – que era a desconhecida com a qual teve o desastrado encontro– reconheceu de imediato no rosto do trapalhão o escritor da foto na quarta capa de um dos livros caídos e espalhados pelo chão.
Com os olhos fixos na publicação ela disse, muito devagar:
–– Mas...desculpa, você é...Jorge Sánchez, né?-
–– Sim, eu...perdão pelo desastre, eu...-
–– Gostei do seu livro. Sim, gostei muito. Posso fazer um par de perguntas? Está com tempo? – ofereceu um cartão, e assim Jorginho soube que Marta era gerente da livraria do aeroporto e que o tempo parecia não ser seu problema.
Passaram um par de meses depois do encontro desajeitado de Marta Rotondo e Jorge, até que o escrevinhador descobrisse o caminho das pedras que deveria estar traçado desde sempre para que ele, já entrando na idade mais madura – que ele entendia como o início da velhice – pudesse por fim saborear a doçura do sucesso. Mal sabiam eles que, em poucas semanas, o mundo viraria um caos com a chegada da peste -a pandemia do corona vírus- e que as descobertas na literatura e na vida já não seriam as mesmas.
Tinham conversado sobre diversos temas, principalmente dos livros de Jorginho e das suas várias tentativas de acertar com um bom romance, assim como dos seus fracassos sucessivos. Marta, porém, parecia querer algo mais do que conversas e o olhava com carinho crescente. Mas ele sempre desviava o olhar, até que numa das tantas tardes de conversas no café de Congonhas, ela fez um movimento de pálpebras e cílios que de imediato lembrou Jorge dos olhos esverdeados e tristes, sempre a um ponto de chorar da já quase, quase esquecida Roberta.
E em seguida rememorou a chuva no telhado naquela madrugada - a última noite de amor em Espírito Santo-, as gotas furando o forro e pingando quentes no seu peito enquanto Roberta se mexia em cima dele, gemendo e fazendo imaginar que aquilo era amor, e que além de tudo podia ser eterno.
Mas de repente, Marta disse algo que o tirou do fascínio e parou de sonhar acordado:
–– Sabia? Minha tia Rosa, a espanhola, aquela que já te contei que escreveu vários livrinhos curtos contando suas memórias, era cunhada de El Brujo López Rega, ministro e alma-máter do governo de Isabelita Perón, nos conturbados anos '70 na Argentina.
Continuará.

Javier Villanueva. São paulo, agosto de 2024.

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