terça-feira, 14 de abril de 2020

A Peste. 2024. Parte 9. O caderno e a Máscara da Morte Rubra


Nenhuma descrição de foto disponível.

A Peste.  2024.
Parte 9.
O caderno e a Máscara da Morte Rubra


Entre os 16 cadernos que Marta e Jorge conseguiram trazer da casa da tia antes que se desatara a pandemia e começasse a quarentena fechada e obrigatória, tinha entrado um intruso altamente perigoso, tão letal como o próprio vírus. Mas foi só nas primeiras tentativas de saída às ruas, uma vez dominada a doença, que ambos notaram sinais de que algo estava fora do normal, se é que se podia chamar assim a situação em que viviam fazia quatro anos e meio. 

Na fracassada -depois voltaremos ao assunto- excursão em busca de Roberta, ocasião em que foi assaltado e, muito estranhamente, teve a arma devolvida pelo ladrão a troca apenas de um pouco de comida e de dinheiro, Jorge notou que havia movimentos fora do comum em torno das suas saídas, e assim acontecia com Marta, segundo ela lhe contou mais tarde.

Rogério Leo, o ex-guarda do Ministério que se havia passado para o lado do crime e que lhe tomou a Taurus 38, apareceu um dia, pela terceira vez em seu caminho. Ainda mais simpático que da vez anterior, tomou o braço da que parecia que iria ser novamente sua vítima e o afastou da luz da rua para falar o mais baixo e escondido que a circunstâncias permitiam.

— É uma advertência, e não me agradeça, que não dá tempo. Escuta bem: muitos dos milicianos apoiadores do Pequeno Ditador derrocado (ninguém queria nem lembrar do nome do Energúmeno) continuam trabalhando para o Ministério; e andam te procurando. Não tem pistas ainda, mas sabem que você tem os cadernos, e tarde ou cedo vão te pegar- disse.

— E qual é o problema com os cadernos? Por que querem encontrá-los? Porque é isso, né, querem os cadernos ou a mim?

— Não. Só os cadernos. Num deles existem provas incriminatórias que poderiam levar muita gente do atual Ministério e das milícias do Pequeno Ditador a uma corte de justiça internacional por crimes contra a humanidade.

— Jesus!- Obrigado, alcançou a dizer, quase tremendo, enquanto Rogério sumia na escuridão das ruas mal iluminadas. 

Jorginho não tinha certeza absoluta, mas já suspeitava qual poderia ser o caderno em questão. Assim que chegou no apartamento, abriu o caixote e procurou, caderno por caderno, até achar o que queria:

                      A “Guardia de Hierro” e o Bruxo López Rega

              "Entre 1972 e 1974 uma organização política (ou político-militar, segundo alguns conhecedores do assunto) pouco visível, e que levava por denominação o pomposo nome de “Guardia de Hierro” — Guarda de Ferro, em português—, se afiança como uma das várias partes integrantes das Juventudes Peronistas.

Segundo muitos dos seus simpatizantes, já nessa época a Guardia de Hierro tinha algo em torno de uns 15 mil militantes, contavam com uma direção bastante experimentada e bem formada politicamente e constituíam,  junto a outras organizações peronistas, o que ficou conhecido na sua época como a Organización Única del Trasvasamiento Generacional (OUTG) — ou Organização Única do Transvazamento entre Gerações— que pretendia servir de canal de passagem das experiências do peronismo dos anos de 1945-55 para os jovens dos anos ‘70.

Segundo conta Facundo, e mesmo sem que exista muita documentação a respeito, entre meados e finais dos anos de 1960, a direção política de Guardia de Hierro obteve uma entrevista pessoal com Perón em Madrid — na mansão do bairro de Puerta de Hierro, da qual alguns historiadores e curioso pensam, equivocadamente, que a organização tomou seu nome—.

Dizem os mais velhos que foi a partir desse encontro que se descartou totalmente a luta armada como uma via para o retorno de Perón do seu exílio, já que os dirigentes voltaram ao país totalmente convencidos de que no havia as mínimas condições sociais nem políticas como para que uma guerrilha pudesse desenvolver-se num país como a Argentina daquele momento e naquelas circunstâncias."

Mas não era apenas isso, Jorginho sabia qual era o assunto. O pressentia e sabia por onde devia buscar nos cadernos.



                            "Enquanto isso

                         "Por essa mesma época, — pouco tempo depois do nascimento da agrupação  Guardia de Hierro no ano 1962, vinculada ao Gallego Alejandro Álvarez e a Héctor Tristán—, José López Rega era iniciado no rito umbanda de origem afro-brasileira durante uma viagem ao Brasil, a inícios de 1963. Contam as más línguas que, num terreiro da periferia de Florianópolis, depois de sacrificar um boi, o Bruxo, vestido com uma túnica branca, foi molhado com o sangue do animal e ficou isolado numa choupana, na qual permaneceu a portas fechadas durante 7 dias, sem tomar banho nem lavar-se, porque isso era um requisito essencial para a sua iniciação no rito.

Ao sétimo dia, ao sair do isolamento, começou a ser chamado de "Hermano Daniel" — ou Irmão Daniel—, e dizem que já levava no pescoço uma cruz invertida, o que alguns, ainda dentro do rito, consideram se tratar de um verdadeiro “símbolo do Anticristo”.

Em Buenos Aires, enquanto isso — um dirigente de origem anarquista que tinha militado em diversos âmbitos sindicais e participado ativamente na resistência peronista, entre 1955 e 59, junto com o lendário John William Cooke e outros “duros” da luta popular— e o Gallego Álvarez, que tinha uma formação  ideológica de esquerda como militante secundarista da Unión de Estudiantes Secundarios, e também lutador  na resistência peronista, preparavam as bases para que, dez anos mais tarde, Juan Perón os recebesse em Puerta de Hierro.

E já nos anos 70, na mesma época em que Álvarez e Tristán ajustavam sua Guardia de Hierro aos desígnios do velho chefe exilado, na condição de “formações especiais”, José López Rega completava sua iniciação umbandista com sucessivas viagens ao Brasil, sobretudo a Porto Alegre, uma cidade que ele considerava como um dos centros mais importantes do rito umbanda.

Além de tudo isso, para reforçar a ligação que ele mesmo fazia entre o umbandismo e a macumba, por um lado, com as estruturas mais conservadoras do poder político mundial pelo outro, o nome de López Rega se destaca também naquela época como o “irmão Daniel” da logia maçônica P-2 —a famosa Propaganda Due— do Venerável Mestre Licio Gelli.

Seu nome foi achado nas fichas que detalhavam os membros da loja, depois de uma revista que a polícia italiana fez em março de 1981 na casa de López Rega em Arezzo, a que ele chamava de "Wanda", por uma grande coincidência, o mesmo nome da esposa de Licio Gelli, o Venerável Mestre."

Ainda não chegara Jorginho nesses cadernos ao que ele -tinha certeza disso- era o motivo de aflição dos milicianos do Ministério e de ameaça a sua própria vida, meio século depois dos acontecimentos relatados nos contos da tia de Marta.

Uma semana depois, e mediante muitas idas e voltas, zig-zagues pelas ruas do centro velho e três entradas e saídas do metrô, Jorginho e Marta tiveram certeza de não estarem sendo seguidos e se encontraram num velho boteco semiabandonado na Rua da Moóca.
Marta deixou com Jorge outros dez cadernos e lhe desejou sorte, pois se não estivessem neles o que ele imaginava, dificilmente iriam se encontrar tão cedo para completar o translado do restante dos contos.


Jorge chegou em casa, ingué parecia ter ido atrás dele nem esperá-lo à porta do apartamento. Leu, e no quinto dos cadernos já achou algumas pistas:

                               "López Rega foi ministro de Bem-estar Social durante o governo de Héctor J. Cámpora, e mais tarde, quando este último foi despejado do poder pela direita peronista, de Raúl Alberto Lastiri — que, por uma dessas grandes coincidências, era seu genro—, e finalmente dos gabinetes do próprio Juan Perón e de Isabel Martinez, quando o velho líder morreu.
Usou e abusou à vontade das enormes quantidades de dinheiro da loteria federal argentina e dos cassinos. E tudo isso deu ao Bruxo uma grande autonomia financeira que lhe permitiu realizar todos seus planos políticos e ao mesmo tempo, amassar ilegalmente uma considerável fortuna pessoal.

Mas a maior realização do Bruxo López Rega foi a organização e a colocação em marcha da Alianza Anticomunista Argentina ou Triple A, grupo armado ilegal, clandestino e para-estatal.  Desde a sua sala de chefe do Ministério de Bem-estar Social, em frente à  Plaza de Mayo, o sinistro bando de assassinos realizou inúmeras ameaças de morte e finalmente executou centenas de atentados a bomba ou metralha, e assassinatos entre 1974 e meados de 1975.

Obrigado a renunciar a seu cargo depois das grandes greves e manifestações de julho de 1975, o Bruxo fugiu para Europa com un diploma oficial de fantasia outorgado pela presidente Isabel Perón. Esteve prófugo da Justiça argentina durante dez anos. Foi detido nos Estados Unidos e transladado preso até a Argentina, onde morreu — pela segunda vez, vamos repetir novamente— em junho de 1989, enquanto era processado por cargos de múltiplos homicídios, associação ilícita, corrupção e sequestros."

Jorginho estava chegando perto, mas nada ainda do que ele imaginava. Continuo procurando até que, já de madrugada, quase deu um berro quando achou o que suspeitava, segundo o que a tia de marta tinha contado:


                                         "O começo do fim

                                      “— Senhores, estão cercados. Coloquem suas armas no chão, e deixem as mãos para cima. Meus soldados vão revistá-los. Em seguida, dêm a meia volta e vão para suas casas.”

Era o entardecer do Sábado, 19 de julho de 1975, e o coronel Jorge Felipe Sosa Molina, chefe do Regimiento de Granaderos a Caballo General San Martin, o corpo que, tradicionalmente, se encarrega de proteger os presidentes argentinos, não podia acreditar no que via.

"Espingardas Itaka, as então modernas metralhadoras israelenses Uzi, e outras ainda mais novas importadas da Bélgica, pistolas automáticas e até mesmo algumas granadas de mão, haviam sido deixadas no gramado da residência presidencial de Olivos. Minutos antes, todo esse arsenal estava nas mãos da custódia de José López Rega que, abandonado pelos seus tradicionais suportes políticos, estava prestes a deixar o país.
Cerca de duas centenas de civis, muitos deles membros da Triple A, a organização terrorista de extrema-direita, que arrasou com a Argentina dos anos 70, criada sob o amparo de López Rega, tinham tentado cercar e tomar a residência de Maria Estela Martinez de Peron, na tentativa de salvar sua chefe; não teriam conseguido, mas por muito pouco não desencadearam uma tragédia.

"Caindo já o sol de inverno, um dos oficiais dos Granaderos, disse a Sosa Molina que o grupo armado estava tentando forçar os portões de entrada para a residência para os lados da rua Villate.

"— O que vamos fazer agora? — quis saber o oficial. Vamos  impedir a entrada deles? — Sosa Molina disse que não. Mas pediu o deslocamento de quatro veículos blindados M-113 – carriers, e espalhou um esquadrão reforçado com cento e cinquenta granaderos para embolsar a banda lopezreguista que, finalmente, entrou nos jardins da residência para cair direto na armadilha.
Em questão de minutos, sem disparar um único tiro, um dos mais poderosos exércitos privados no país tinha sido desarmado.

" Fique encarregado de tudo isto— Sosa Molina disse ao chefe da Casa Militar, o Capitão Enrique Ventureira, depois de dar uma última olhada para o pequeno arsenal. O marinheiro não mostrou muita surpresa. Desta vez, a quantidade era bem maior, mas não foi a primeira vez que a guarda militar de Olivos, que revistava um por um os carros que entravam na residência, teve que sequestrar de dentro do veículo do Ministério de Bem-estar Social armas e explosivos em grandes quantidades." 

Bingo! gritou Jorge. Era isso. O tal capitão argentino tinha sido detido e demorado por mais de doze horas no aeroporto do Galeão em 1998, quando caiu sobre ele a denúncia de tráfico internacional de armas. Conseguiu uma boa fiança e desapareceu. Em 2006, um obscuro capitão reformado do exército brasileiro, deputado no congresso nacional, era seguido pela Interpol e vigiado pelo Serviços Reservados das forças armadas pela comprovada conexão com o grupo de traficantes que parecia comandar Ventureira.
Acabada a ditadura militar de 1976-1983 depois de perdida a guerra nas Malvinas, milhares de armas sumiram dos quarteis, incluindo mísseis Exocet, os que tinham sido usado no conflito no Atlântico Sul. Grande parte dessas armas deviam estar, então -e essa era a causa da preocupação dos milicianos- nas mãos da segunda geração dos traficantes cuja cabeça mais visível nos anos 90 tinha sido Enrique ventureira.

Esse caderno era, para Jorge e Marta, o príncipe da Máscara Rubra que tinha entrado, pior que a peste, na sua vida.

Continuará.

J.V. São Paulo, agosto de 2024.








Nenhum comentário:

Postar um comentário