Nesses dias passados insisti em ler e reler o livro de Conrad sobre os horrores da colonização do Congo, "O Coração das Trevas" (1902), que deu origem ao último romance do Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa em 2010, "O sonho do celta".
O autor peruano encara as contradições insondáveis do mal através do relato da aventura extrema e vital de Roger Casement na África e depois na Amazônia. Ler o livro de Adam Hochschild sobre a colonização do Estado Livre do Congo pelo rei Leopoldo II da Bélgica, o levaram a afirmar que Roger Casement "merece a honra de um grande romance" por ser dos primeiros a denunciar o horror da conquista e acima de tudo, pela sua crença de que a dialética entre civilização e barbárie sempre revela a relação entre ambos.
Quando Conrad conheceu esses horrores todos, ainda era o jovem capitão Konrad Korzeniovski, polonês naturalizado inglês, e essa história mudou sua vida pelo avesso. O mesmo aconteceu com o seu personagem Charlie Marlow, que no romance fala compulsivamente -tanto ao seu interlocutor como a seus leitores e à namorada de Kurtz, no final- sobre seu encontro com o colono louco e "o coração das trevas triunfantes" . Quando escreve o seu romance, Vargas Llosa já é um escritor septuagenário, conhecido internacionalmente, e que recebeu o Prêmio Nobel em vésperas de publicar o seu testemunho sobre os acontecimentos do Congo, contados com a mesma paixão e devoção, e com a mesma perplexidade inquieta e profunda com que o Conrad jovem fez o "Coração das Trevas".
Mas, finalmente, as centenas de páginas de Conrad que Borges descreveu como "talvez a mais forte das histórias que a imaginação humana tem feito", e as quase cinco centenas do novo romance de Vargas Llosa se juntaram para ocupar um lugar de exceção no mundo da literatura. Do romance curto e intenso, de 1902, ao muito longo de 2010 se manteve uma imagem poderosa que estrutura ambos textos: a história mais precisa e veraz de alguns eventos históricos só pode vir de uma recapitulação dentro da consciência do irremediável, e do remorso pessoal do protagonista. E esta é, no nosso caso, a dupla função dos cenários, também duplos, em que atua "O Sonho do Celta". Por um lado, há capítulos em que o narrador mescla os dados da história, e com uma vertiginos reconstrução das aventuras do cônsul Roger Casement em três momentos da sua vida: o Congo, onde conheceu o horror da colonização, as peregrinações nas quais, já famoso por suas denúncias e sendo oficial comissionado do Reino Unido, levaram-o a informar ao mundo sobre fazendas de exploração da borracha na Amazônia peruana. As mesmas que, finalmente, produzem a sua volta à Irlanda natal, convertido já em um fervoroso nacionalista e instigador da intervenção alemã na revolta da Páscoa de 1916, o que acabou custando-lhe a vida na forca.
Mas os capítulos mais intensos são, sem dúvida, os ímpares, desde o que dá arranque ao romance; são aqueles que se esticam até o esgotamento físico no tempo de permanência de Casement no corredor da morte, preso en Pentonville, sem outro subsídio que uma refeição miserável, a leitura de Kempis, alguma ou outra visita mais preocupante do que reconfortante, e os diálogos com um xerife brutal, que no entanto, sofre e tem sofrido muito, e que revela muito mais da taciturna condição humana do que o seu próprio prisioneiro.
Casement e seu autor remetem o leitor a considerar a fragilidade essencial dos seres humanos. Em um dos momentos mais precisos do livro, Casement nos diz que "mais uma vez disse que sua vida tinha sido uma constante contradição, uma sucessão confussa e uma série de horríveis emaranhados onde a verdade das suas intenções e comportamentos ficava sempre, por obra do acaso ou por pura estupidez, obscurecida, distorcida, trastocada em uma mentira. "
"Nem sempre é ruim que exista uma atmosfera de incerteza em torno de Roger Casement como prova de que é impossível conhecer de modo definitivo a um ser humano" nos advertem no início do livro. Impossível, talvez, mas nunca é inútil tentar... Porque é justamente a ambigüidade e a fraqueza dos homens as que fazem virar erros os conceitos mais elevados da revolução, da libertação, da identidade ou o patriotismo, porque -segundo acha o nosso Casement- a política "traz o melhor dos seres humanos, mas também o pior: a crueldade, a inveja, o ressentimento e a arrogância".
Nenhum comentário:
Postar um comentário