quinta-feira, 23 de maio de 2013




As drogas de alguns e a independência de outros.

O médico Ronaldo Laranjeira -que alguns críticos dos planos de combate ao crack e outras drogas consideram despectivamente como o “supremo comandante científico” da guerra à dependência química-  deu entrevista no Roda Viva da TV Cultura (veja vídeo abaixo). 

O Denis Russo Bugierman, da revista Superinteressante, foi um dos entrevistadores que fizeram afirmações e perguntas instigantes, mas sem aparente agressividade durante o programa. O artigo que ele publica no dia seguinte, porém, me obriga a dar minha opinião também, e oferecer a cara para a polêmica.

Fica claro na entrevista –ainda para quem não é médico, nem psicólogo especializado em dependência química, nem sofre em família o flagelo- que existem duas linhas claramente opostas em relação ao que fazer com as drogas e seus adictos.
Laranjeira foi acusado -mais duramente nos bastidores, segundo conta  o próprio Denis Russo, e mais suavemente frente às câmeras- de sonegar ou distorcer informações ou fatos.
Também houve quem falasse, após a entrevista, que o Laranjeira tinha sido “autoritário, prepotente, arrogante”.

Os fatos: quem assistiu ao programa que reproduzo mais embaixo, e quem conhece pessoalmente o Laranjeira, poderá dizer se este conjunto de adjetivos é justo, ou se trata-se apenas de balas perdidas de uma “interna” dos psiquiatras e psicólogos envolvidos no tema. Eu não vi arrogância, a não ser na entrevistadora Ilona Szabo, coordenadora do secretariado da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, um órgão internacional presidido por FHC. 

Mais fatos da realidade, nua e crua: vejam no vídeo a senhora que se queixa, quase no fim do programa, de não ter sido ouvida; é a dona Mara, diretora da associação Amor Exigente, organização sem fins lucrativos, constituída por milhares de famílias de dependentes químicos no Brasil e em outros dois países da América Latina, e que é a melhor síntese dos fatos reais, crus e extremamante duros.
Não apenas o crack, mas, sobretudo o álcool, a cocaína e a maconha, destroem vidas jovens, arrasam casamentos e famílias inteiras, e muitas vezes levam o viciado à insanidade mental, a um entra e sai de instituições psiquiátricas, comunidades terapêuticas e prisão e/ou finalmente à morte.
Isto é um fato, visível em qualquer programa, sensacionalista ou não, da televisão que trate de notícias: 80% dos crimes, atropelamentos, agressões, assaltos e roubos, tem origem em álcool ou em drogas ilegais.

Ainda mais e mais fatos: as chamadas comorbidades são doenças, tanto mentais como corporais, anteriores ou posteriores ao uso continuado do álcool ou outras drogas, incluindo o tabaco. Transtornos como a bipolaridade, o borderline e a esquizofrenia, são todas doenças tratáveis com terapias baseadas em fármacos e com acompanhamento psicológico, mas que sempre se potencializam quando precedidas, acompanhadas ou se aparecem a posteriori do uso abusivo de drogas. Quadros psicóticos sérios, alguns deles terminados em suicídios ou violência contra terceiros -geralmente familiares- ou “apenas” depressões profundas, seguidas de euforia e descontrole, são quadros recorrentes.
O Dr. Laranjeira foi acusado no programa de ver tudo do “ponto de vista médico”. Nada mais certo e lógico já que o Laranjeiras é médico e as drogas são consideradas pela OMS -órgão que trata da saúde mundial- como uma doença.
Para quem conheça o cotidiano e as políticas dos grupos acima mencionados, Amor Exigente, e os mais antigos -Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos- sabe que o Laranjeira -uns dos tantos profissionais que realizam trabalhos confluentes com estes agrupamentos- propõe políticas amplas e abrangentes em favor do paciente dependente químico e suas famílias. O termo “guerra às drogas” nem se aproxima de uma metáfora maldosa, apenas frisada por quem parece não querer combater este flagelo.

Esclarecendo: “guerra às drogas” é a política dos EUA adotada por R. Reagan nos anos 80 em íntima fusão com a retirada de apoio às ditaduras militares de todo o continente que a potência norte-americana tinha dado nos anos 60 e 70. Objetivo: encerrar a Guerra Fria, derrotando a URSS e as guerrilhas latino-americanas que cobravam pedágio dos narcotraficantes colombianos. 
Essa “guerra” do Reagan e dos EUA terminou com o triunfo contra a URSS, mas continuou na Colômbia com a ação militar contra o narcotráfico. A guerra do Reagan incluía até severíssimas punições aos adictos, que eram castigados com um mínimo de 5 anos de cárcere. Hoje, esta política está fracassada e a cada dia novas propostas surgem em contrapartida.

A forma de combate à doença das drogas, na qual se engajam profissionais como o Laranjeira e as irmandades anônimas populares como AE, AA, NA e outras, é multidisciplinar e oferece diversas opções, todas desarmadas, longe de qualquer solução militar ou jurídica de repressão as que, explicitamente, são consideradas como o “último recurso” a ser considerado.
O que é um acionar multidisciplinar e de diversas opções? é um conjunto de propostas que sabe que cada caso é um, que cada dependência e cada adicto é um individuo, mesmo que existam tratamentos especializados e “receitas” para casos parecidos ou similares.
A abstinência é o primeiro passo para o tratamento que visa a recuperação do paciente em relação à adicção, e sua ressocialização, tentando levar o dependente para longe das substâncias químicas psicotrópicas -isto é: que alteram o funcionamento normal das funções cerebrais- e aproxima-lo outra vez do mundo do trabalho, o estudo e a diversão sadia no âmbito familiar.
A internação voluntária -quando o dependente entende que está dominado pelo abuso das drogas, e sem outra saída- é a primeira opção que se oferece, depois de ter tentado tratamentos ambulatoriais e de apoio psicológico.
A internação involuntária, decidida pela família, é a segunda opção, dolorosa, mas necessária quando o doente de dependência já perdeu o controle sobre a própria vontade e corre riscos severos de morte, agressão a terceiros e/ou de perda da liberdade pelos atos contra a sociedade. 

A droga de cada um

Segundo o blog do Denis Russo Burgierman, “Todo mundo tem a sua droga. A da minha mãe, por exemplo, é a endorfina, nome que é uma abreviação de “endo-morfina”, ou “morfina interior” (...)
“Minha mãe busca a dopamina dela de maneira saudável, correndo pelas ruas e pelos parques de São Paulo, subindo em pódios com medalhas douradas no pescoço – exercício físico faz o corpo produzir endorfina. Há quem busque o prazer em outras coisas. Glutões produzem dopamina quando se empanturram. Iogues produzem quando respiram profundamente. Jogadores vão em busca dela na emoção das apostas do bingo ou do carteado. Futebol, chope, sexo, novela, dança, festa, trabalho, cinema – tudo aquilo que tem o potencial de dar prazer pode estimular a produção de dopamina. Inclusive drogas, como álcool, tabaco, nicotina, açúcar, maconha, cocaína, heroína”. Bem escrito e correto nos conceitos. Até aqui.

Mas por que, em meio a uma luta (atenção, luta não é necessariamente “guerra”) contra as consequências nefastas das drogas, essa reação contra o Laranjeira? E sobretudo, por que surge o ataque do grupo do Fernando Henrique Cardoso e a Ilona Szabo no blog do Denis Russo? E por que o rapaz encarregado de conferir a repercussão da entrevista no Twitter, interagindo o programa com informações externas, passou ele próprio a atacar o Laranjeira pela rede social? Laranjeira falava, e o twittero da TV Cultura o desqualificava em seu perfil.

E para ir já definindo mais o meu pensamento que, repito, se parece muito ao do Laranjeira e ao das associações de ajuda –AE, AA e NA- digo que em momento algum do programa, ou das milhares de sessões destes grupos em clubes, igrejas e comunidades populares, se falou em “repressão ao tráfico” ou “internação como solução”. O Laranjeira comentou também algo que é bem conhecido: em países com uma eficiente organização das políticas sociais, países pequenos e de mais fácil administração, como a Suíça, Holanda e Portugal, os governos puderam tentar uma experiência de liberação parcial da maconha. Na Holanda já foi proibida para os turistas estrangeiros, mas tudo isto num contexto de baixa injustiça e desigualdade social e com políticas públicas que oferecem um sistema de saúde sempre disponível.
Essa política chamada de “redução de danos” -em que se troca drogas mais pesadas pela considerada “mais leve”, a maconha- foi liberada em ambientes com variáveis muito mais controladas que no Brasil, com seus 8,5 milhões de Km2, 200 milhões de habitantes, majoritariamente pobres, e rodeado de quatro grandes produtores de drogas. Mesmo assim, ainda nesses países, a experiência está em retrocesso.

Visto tudo isto, o que é realmente estranho e preocupante nas posturas –e atitudes, como a do twitteiro e os jornalistas mencionados- é que sempre que se fala de políticas para prevenção e combate aos abusos de drogas, o que se propõe é só a “liberação das drogas”. Cotidianamente se levanta o direito individual ao gozo das drogas, e a liberdade tolhida de quem vai ser internado por abuso e perda das capacidades de decisão, comprovadíssimas  no caso do crack, mas também em drogas supostamente “leves”, como a maconha. Parece haver uma torcida pessoal, intimamente ligada à “recreatividade” das drogas. Mas fica claro com a vivência diária com o álcool –liberado e rei da mídia brasileira- que as consequências dessa liberdade individual se chocam com o bem-estar comum. Ou seja, uso e abuso de drogas não é uma questão individual, mas pública, de interesse social.

Vejamos também o vídeo da entrevista a Drauzio Varella, outro expert no assunto, e tiremos conclusões. Mas sempre tenhamos em conta que, droga psicotrópica –ou seja, que altera as percepções sensoriais e as capacidades volitivas, da vontade- compromete o convívio social, tira a liberdade do indivíduo e incomoda em diversos graus, pesando, custando e doendo à sociedade.
Pense bem: você ficaria de porre algumas horas antes de casar? Ficaria chapado de maconha antes de uma prova? Fumaria crack para se apresentar a um novo emprego? Não? Você acha que tem força e capacidade para só se embebedar aos finais de semana, ou para usar maconha, cocaína ou qualquer outra droga e “parar quando quiser”? Parabéns, você é uma das pessoas que –na roleta russa do uso de psicotrópicos- teve a sorte de não ficar viciado. Mesmo que nada possa dar garantias de que a pessoa fique para sempre imune à dependência, este não pode ser um critério científico para uma política de saúde pública.
Acompanhar ambulatorialmente o dependente químico –de qualquer e toda droga, incluindo as legais- oferecer assistência psicológica e psiquiátrica, eventualmente internar –voluntária ou compulsoriamente- o paciente, oferecer ressocialização, são as práticas dos movimentos familiares de apoio ao paciente e seu entorno. Isto é o que o Laranjeira propõe também, e os que atacam com tanta virulência esta linha de ação e de conduta, ao invés de combater o problema das drogas, demonstram ter uma preocupação muito especial pela liberação das mesmas, algo que a Souza Cruz e a Philips Morris também aguardam ansiosos para somar aos lucros que já lhes proporcionam o tabagismo, mesmo com o alto custo social em doenças cardiovasculares e pulmonares.

Educação em primeiro lugar, boa e pública, incluindo uma política de prevenção às drogas; saúde pública de qualidade, que incorpore os cuidados específicos para o dependente químico. Proteção jurídica do dependente, trocando penalidades por tratamento, no caso de pequenos delitos como furtos, comuns no adicto que precisa recorrer a roubos para sustentar o vício. 
Por último, e só quando isto estiver bem encaminhado –não digo resolvido, mas sim com boas perspectivas- podemos passar a discutir propostas que contemplem uma discriminalização total do usuário e uma repressão específica apenas ao grande traficante, sem confundir usuário (que quase sempre termina sendo um pequeno ou médio traficante) com os senhores da guerra e a violência.




Javier Villanueva, São Paulo, 23 de maio de 2013.

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