As drogas de alguns e
a independência de outros.
O médico Ronaldo
Laranjeira -que alguns críticos dos planos de combate ao crack e outras drogas
consideram despectivamente como o “supremo comandante científico” da guerra à
dependência química- deu entrevista no Roda Viva da TV Cultura (veja
vídeo abaixo).
O Denis Russo
Bugierman, da revista Superinteressante, foi um dos entrevistadores que fizeram
afirmações e perguntas instigantes, mas sem aparente agressividade durante o
programa. O artigo que ele publica no dia seguinte, porém, me obriga a dar
minha opinião também, e oferecer a cara para a polêmica.
Fica claro na
entrevista –ainda para quem não é médico, nem psicólogo especializado em
dependência química, nem sofre em família o flagelo- que existem duas linhas
claramente opostas em relação ao que fazer com as drogas e seus adictos.
Laranjeira foi acusado
-mais duramente nos bastidores, segundo conta o próprio Denis Russo, e mais suavemente
frente às câmeras- de sonegar ou distorcer informações ou fatos.
Também houve quem
falasse, após a entrevista, que o Laranjeira tinha sido “autoritário,
prepotente, arrogante”.
Os fatos: quem
assistiu ao programa que reproduzo mais embaixo, e quem conhece pessoalmente o
Laranjeira, poderá dizer se este conjunto de adjetivos é justo, ou se trata-se
apenas de balas perdidas de uma “interna” dos psiquiatras e psicólogos
envolvidos no tema. Eu não vi arrogância, a não ser na entrevistadora
Ilona Szabo, coordenadora do secretariado da Comissão Global de Políticas sobre
Drogas, um órgão internacional presidido por FHC.
Mais fatos da
realidade, nua e crua: vejam no vídeo a senhora que se
queixa, quase no fim do programa, de não ter sido ouvida; é a dona Mara,
diretora da associação Amor Exigente, organização sem fins lucrativos, constituída
por milhares de famílias de dependentes químicos no Brasil e em outros dois
países da América Latina, e que é a melhor síntese dos fatos reais, crus e
extremamante duros.
Não apenas o crack,
mas, sobretudo o álcool, a cocaína e a maconha, destroem vidas jovens, arrasam
casamentos e famílias inteiras, e muitas vezes levam o viciado à insanidade
mental, a um entra e sai de instituições psiquiátricas, comunidades
terapêuticas e prisão e/ou finalmente à morte.
Isto é um fato,
visível em qualquer programa, sensacionalista ou não, da televisão que trate de
notícias: 80% dos crimes, atropelamentos, agressões, assaltos e roubos, tem
origem em álcool ou em drogas ilegais.
Ainda mais e mais
fatos: as chamadas comorbidades são doenças, tanto mentais como
corporais, anteriores ou posteriores ao uso continuado do álcool ou outras
drogas, incluindo o tabaco. Transtornos como a bipolaridade, o borderline e a
esquizofrenia, são todas doenças tratáveis com terapias baseadas em fármacos e
com acompanhamento psicológico, mas que sempre se potencializam quando
precedidas, acompanhadas ou se aparecem a posteriori do uso abusivo de drogas.
Quadros psicóticos sérios, alguns deles terminados em suicídios ou violência
contra terceiros -geralmente familiares- ou “apenas” depressões profundas,
seguidas de euforia e descontrole, são quadros recorrentes.
O Dr. Laranjeira foi
acusado no programa de ver tudo do “ponto de vista médico”. Nada mais certo e
lógico já que o Laranjeiras é médico e as drogas são consideradas pela OMS
-órgão que trata da saúde mundial- como uma doença.
Para quem conheça o
cotidiano e as políticas dos grupos acima mencionados, Amor Exigente, e os mais
antigos -Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos- sabe que o Laranjeira -uns
dos tantos profissionais que realizam trabalhos confluentes com estes
agrupamentos- propõe políticas amplas e abrangentes em favor do paciente
dependente químico e suas famílias. O termo “guerra às drogas” nem se aproxima
de uma metáfora maldosa, apenas frisada por quem parece não querer combater
este flagelo.
Esclarecendo: “guerra às drogas” é a política dos EUA adotada por R. Reagan nos anos 80 em íntima
fusão com a retirada de apoio às ditaduras militares de todo o continente que a
potência norte-americana tinha dado nos anos 60 e 70. Objetivo: encerrar a
Guerra Fria, derrotando a URSS e as guerrilhas latino-americanas que cobravam
pedágio dos narcotraficantes colombianos.
Essa “guerra” do Reagan e dos EUA
terminou com o triunfo contra a URSS, mas continuou na Colômbia com a ação
militar contra o narcotráfico. A guerra do Reagan incluía até severíssimas
punições aos adictos, que eram castigados com um mínimo de 5 anos de cárcere.
Hoje, esta política está fracassada e a cada dia novas propostas surgem em
contrapartida.
A forma de combate à
doença das drogas, na qual se engajam profissionais como o Laranjeira e as irmandades
anônimas populares como AE, AA, NA e outras, é multidisciplinar e oferece
diversas opções, todas desarmadas, longe de qualquer solução militar ou
jurídica de repressão as que, explicitamente, são consideradas como o “último
recurso” a ser considerado.
O que é um acionar
multidisciplinar e de diversas opções? é um conjunto de propostas que sabe que
cada caso é um, que cada dependência e cada adicto é um individuo, mesmo que
existam tratamentos especializados e “receitas” para casos parecidos ou
similares.
A abstinência é o
primeiro passo para o tratamento que visa a recuperação do paciente em relação à
adicção, e sua ressocialização, tentando levar o dependente para longe das substâncias
químicas psicotrópicas -isto é: que alteram o funcionamento normal das funções
cerebrais- e aproxima-lo outra vez do mundo do trabalho, o estudo e a diversão
sadia no âmbito familiar.
A internação
voluntária -quando o dependente entende que está dominado pelo abuso das
drogas, e sem outra saída- é a primeira opção que se oferece, depois de ter
tentado tratamentos ambulatoriais e de apoio psicológico.
A internação involuntária,
decidida pela família, é a segunda opção, dolorosa, mas necessária quando o
doente de dependência já perdeu o controle sobre a própria vontade e corre
riscos severos de morte, agressão a terceiros e/ou de perda da liberdade pelos
atos contra a sociedade.
A droga de cada um
Segundo o blog do Denis Russo Burgierman, “Todo mundo
tem a sua droga. A da minha mãe, por exemplo, é a endorfina, nome que é uma
abreviação de “endo-morfina”, ou “morfina interior” (...)
“Minha mãe busca a
dopamina dela de maneira saudável, correndo pelas ruas e pelos parques de São
Paulo, subindo em pódios com medalhas douradas no pescoço – exercício físico
faz o corpo produzir endorfina. Há quem busque o prazer em outras coisas.
Glutões produzem dopamina quando se empanturram. Iogues produzem quando
respiram profundamente. Jogadores vão em busca dela na emoção das apostas do
bingo ou do carteado. Futebol, chope, sexo, novela, dança, festa, trabalho,
cinema – tudo aquilo que tem o potencial de dar prazer pode estimular a
produção de dopamina. Inclusive drogas, como álcool, tabaco, nicotina, açúcar,
maconha, cocaína, heroína”. Bem escrito e correto nos conceitos. Até aqui.
Mas por que, em meio a
uma luta (atenção, luta não é
necessariamente “guerra”) contra as consequências nefastas das drogas, essa reação
contra o Laranjeira? E sobretudo, por que surge o ataque do grupo do Fernando
Henrique Cardoso e a Ilona Szabo no blog do Denis Russo? E por que o rapaz encarregado
de conferir a repercussão da entrevista no Twitter, interagindo o programa com
informações externas, passou ele próprio a atacar o Laranjeira pela rede
social? Laranjeira falava, e o twittero da TV Cultura o desqualificava em seu
perfil.
E para ir já definindo mais
o meu pensamento que, repito, se parece muito ao do Laranjeira e ao das associações
de ajuda –AE, AA e NA- digo que em momento algum do programa, ou das milhares
de sessões destes grupos em clubes, igrejas e comunidades populares, se falou
em “repressão ao tráfico” ou “internação como solução”. O Laranjeira comentou
também algo que é bem conhecido: em países com uma eficiente organização das
políticas sociais, países pequenos e de mais fácil administração, como a Suíça,
Holanda e Portugal, os governos puderam tentar uma experiência de liberação parcial
da maconha. Na Holanda já foi proibida para os turistas estrangeiros, mas tudo
isto num contexto de baixa injustiça e desigualdade social e com políticas
públicas que oferecem um sistema de saúde sempre disponível.
Essa política chamada de “redução
de danos” -em que se troca drogas mais pesadas pela considerada “mais leve”, a
maconha- foi liberada em ambientes com variáveis muito mais controladas que no
Brasil, com seus 8,5 milhões de Km2, 200 milhões de habitantes, majoritariamente
pobres, e rodeado de quatro grandes produtores de drogas. Mesmo assim, ainda nesses países, a experiência está em retrocesso.
Visto tudo isto, o que é realmente
estranho e preocupante nas posturas –e atitudes, como a do twitteiro e os
jornalistas mencionados- é que sempre que se fala de políticas para prevenção e
combate aos abusos de drogas, o que se propõe é só a “liberação das drogas”. Cotidianamente
se levanta o direito individual ao gozo das drogas, e a liberdade tolhida de
quem vai ser internado por abuso e perda das capacidades de decisão,
comprovadíssimas no caso do crack, mas
também em drogas supostamente “leves”, como a maconha. Parece haver uma torcida
pessoal, intimamente ligada à “recreatividade” das drogas. Mas fica claro com a
vivência diária com o álcool –liberado e rei da mídia brasileira- que as consequências
dessa liberdade individual se chocam com o bem-estar comum. Ou seja, uso e abuso
de drogas não é uma questão individual, mas pública, de interesse social.
Vejamos também o vídeo da
entrevista a Drauzio Varella, outro expert no assunto, e tiremos conclusões.
Mas sempre tenhamos em conta que, droga psicotrópica –ou seja, que altera as percepções
sensoriais e as capacidades volitivas, da vontade- compromete o convívio social,
tira a liberdade do indivíduo e incomoda em diversos graus, pesando, custando e
doendo à sociedade.
Pense bem: você ficaria de
porre algumas horas antes de casar? Ficaria chapado de maconha antes de uma
prova? Fumaria crack para se apresentar a um novo emprego? Não? Você acha que
tem força e capacidade para só se embebedar aos finais de semana, ou para usar
maconha, cocaína ou qualquer outra droga e “parar quando quiser”? Parabéns,
você é uma das pessoas que –na roleta russa do uso de psicotrópicos- teve a
sorte de não ficar viciado. Mesmo que nada possa dar garantias de que a pessoa
fique para sempre imune à dependência, este não pode ser um critério científico
para uma política de saúde pública.
Acompanhar
ambulatorialmente o dependente químico –de qualquer e toda droga, incluindo as
legais- oferecer assistência psicológica e psiquiátrica, eventualmente internar
–voluntária ou compulsoriamente- o paciente, oferecer ressocialização, são as práticas
dos movimentos familiares de apoio ao paciente e seu entorno. Isto é o que o
Laranjeira propõe também, e os que atacam com tanta virulência esta linha de
ação e de conduta, ao invés de combater o problema das drogas, demonstram ter
uma preocupação muito especial pela liberação das mesmas, algo que a Souza Cruz
e a Philips Morris também aguardam ansiosos para somar aos lucros que já lhes
proporcionam o tabagismo, mesmo com o alto custo social em doenças
cardiovasculares e pulmonares.
Educação em primeiro lugar,
boa e pública, incluindo uma política de prevenção às drogas; saúde pública de
qualidade, que incorpore os cuidados específicos para o dependente químico.
Proteção jurídica do dependente, trocando penalidades por tratamento, no caso
de pequenos delitos como furtos, comuns no adicto que precisa recorrer a roubos
para sustentar o vício.
Por último, e só quando isto estiver bem encaminhado –não
digo resolvido, mas sim com boas
perspectivas- podemos passar a discutir propostas que contemplem uma
discriminalização total do usuário e uma repressão específica apenas ao grande
traficante, sem confundir usuário (que quase sempre termina sendo um pequeno ou
médio traficante) com os senhores da guerra e a violência.
Javier Villanueva, São Paulo, 23 de maio de 2013.
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