sexta-feira, 3 de maio de 2013

O homem lúcido numa poltrona de avião




“O homem lúcido", escutava Javier no avião, em um DVD que não quis ver durante o voo a Buenos Aires, mas cujos diálogos ouvia com os olhos fechados, "sabe que a vida é um ônus de fatos e emoções, que viver e morrer são valores da mesma matéria, e pesam quase o mesmo, porque a vida tem tantos sofrimentos que a sua interrupção pela morte não deveria ser necessariamente um mal. Os lúcidos sabem que são meros equilibristas na corda bamba da vida. E seja por acidente, ou pela opção de uma existência mais sacrificada ou heroica inclusive, é possível cair no abismo, interrompendo de repente a função do circo, produzindo um gemido coletivo de estupor na plateia... e depois, o silêncio incômodo que precede a todo o esquecimento.

Mas o homem lúcido pode também optar pela vida, e então esgotará todas as possibilidades, e poderá beber as belezas das ruas e dos campos; terá planos, mas se por acaso o atingirem a infelicidade e os seus pesares: a nostalgia, a dor ou outro emissário qualquer da morte, saberá suportar com coragem, mansamente; e morrerá, de causas naturais, velho, ao lado de filhos e netos, que conhecerão a sua aventura magnífica. A justa lei da natureza equilibra o que é ruim na vida de um homem, e o iguala sempre ao mais favorável. Mas ao homem lúcido que optou pela vida, se lhe permite que tenha o poder magnífico de alterar essa lei durante a sua existência, os acontecimentos positivos serão sempre mais, e muitíssimo mais significativos que os maus.”

Javier recorda ter lido em algum lugar que esse texto que agora ouve era parte de um tratado sobre a lucidez, escrito talvez no século VI a.C., na Caldeia.
Aquelas reflexões o fazem lembrar-se de um escrito de Xavier Bichat, também sobre o fim da vida: “A grande diferença entre a morte por velhice e aquela que ocorre de súbito, em um acidente por exemplo, é que, na primeira, a vida começa a apagar-se por todas as partes, e termina no coração; a morte exerce o seu império da periferia para o centro”.
E é verdade, pensa Javier: o velho morre de tanto ter vivido, aos poucos. Por isso quase sempre morre feliz, lúcido ao fim.

JV. Abril de 2013

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