segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Managua, São Paulo, 19 de julio de 1979

São Paulo, 23 de abril de 1997, duas e dez da tarde.

Ficou nublado de repente, e a tarde seca mudou sem aviso prévio, como uma mostra do clima louco paulista, trazendo um ar fresco que anuncia chuviscos e frio. 
Deixo prontas as malas e reviso os livros e o “Laprida” que quero ler na viagem, um caderno de 200 folhas e capas duras que – segundo disse a minha mãe quando me chamou por telefone e me entusiasmou a que fizesse esta viagem a Catamarca– é uma recopilação de anotações e contos do meu pai. O folheio com uma certa nostalgia do velho, mas me perco em outras divagaciones e noto de repente que o tempo está começando a correr. 

Fecho o caderno e termino de arranjar a mala; reviso os bolsos do jeans: identidade argentina e documento brasileiro, talão de cheques, carteira de motorista, cartão de crédito, e alguns dólares para trocar em Ezeiza e mais tarde em Córdoba; olho o “Laprida” de novo e me chama a atenção uma letra que não parece ser do manuscrito do meu pai; chamo ao táxi, e deixo o caderno fora da mala, na pasta. 
Enquanto espero, leio:         
                                                                              
San Pablo, Brasil, 19 de julho de 1979

“Embora estamos em pleno inverno, o calor é  insuportável entre Corrientes e Misiones, mas por sorte não choveu em todo o caminho. Por fim, após 19 hs. de viagem desde Córdoba, cheguei a Porto Iguazú. 
Controlei o medo nas filas da Gendarmería e de Migrações com o meu documento falso na mão, repetindo-me: “vou passar; não me vão deter”. E por sorte, o documento pareceu  bom aos gendarmes armados de FAL que me franquearam o passo. Aliviado, tomei a balsa até Foz do Iguaçu. 
Cruzei o rio, e quando calculei que estava em águas brasileiras, saquei o meu documento autêntico do salto do sapato onde o tinha escondido, e guardei a cédula do tal Luis Melgarejo, agradecendo- lhe deveras a sua longa e inestimável ajuda.
Viajei mais 18 horas de ónibus até San Pablo. Embora antes já tinha andado milhares de quilómetros pelo norte argentino, ao ver as selvas da fronteira brasileira me perguntei como podíamos nos imaginar que os exércitos insurrectos poderiam vencer as tropas inimigas no caso de uma revolução popular. Não parecia nada fácil.

Hoje, ao descer na rodoviária antiga, soube que os sandinistas já tinham tomado Managua e derrocado o tirano Somoza. Vejo a cor cinza dos bairros populares paulistanos e a verdade que não é muito atraente; mas penso na Nicarágua e me decido: é aqui mesmo que eu fico, já não há muito o que fazer lá. Queria ir lutar, mas agora que vai começar a disputa pelo poder, sei que não faço falta, não sou bom nisso.

Releio a carta de um amigo de Cordoba que militava na Ters, um grupo que chamávamos de “pacifista”, por não apoiar a luta armada contra a ditadura. Agora ele estava na Nicarágua, em uma coluna de suporte aos guerrilheiros sandinistas, e me contava os conflitos internos que se via vir: 

“—Na costa atlântica, na cidade de Bluefields, a derrota  dos somocistas é mérito total dos nossos combatentes da Brigada Simón Bolívar. Na região, ligada com Managua só por barco ou avioneta, a maioria da população é negra e intensamente pobre, mas há grandes fazendas e riquezas dos somocistas e das multinacionais. Fomos lutar em barco desde Porto Limão, na Costa Rica, com o apoio do Partido Autêntico de Marvin Wright— escreve  o “Alemão” da Ters. 
—Um barco pesqueiro levou a coluna de 70 homens armados com M-16, escopetas, revólveres e cartuchos de dinamite. O 7 de julho, com a desbandada dos somosistas, nossa brigada e os sandinistas locais tomamos o controle da cidade. Ali não se armou um governo com os partidos patronais, como o que os sandinistas estão formando nacionalmente. O poder local é o grupo de sandinistas independentes apoiados pela nossa Brigada— conta o “Alemão”
—Na Brigada Simón Bolívar, da Colômbia, há argentinos da Ters e do PO, opostos à política guerrilheira guevarista. A nossa corrente e milhares de combatentes que têm a simpatia da maioria da população, apoiamos ao FSLN, igual que o governo panamenho de Torrijo, que mandou uma brigada, e o costarricense, que nos dá toda uma fronteira de apoio, além do PC cubano e o socialismo europeu—, segue relatando o “Alemão”, e me reforça a ideia de que os argentinos, sejam guerrilheiros como Gorriarán Merlo ou o Ché, apoiando as revoluções de outros países sem condições; ou como os “morenistas” da Ters, que outra vez, como vinte anos antes em Cuba, terminarão expulsados por serem troskistas; os argentinos, digo, sempre revivemos a tragédia da Guerra Civil espanhola, dos desencontros nas fileiras da esquerda, os desencantos surgidos da revolução real, os conflitos inevitáveis de interesses e da luta pelo poder. 
Decido que fico no Brasil, e não penso mais no tema, ao menos por enquanto.

Leia mais em "Crônicas de Utopias e Amores, de Demônios e Heróis da Pátria" J.V. São Paulo, 2006.

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