sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Samuel e a arca da eterna juventude

Contam que quando ainda era muito jovenzinho, dom Samuel Barrionuevo salvou um filhote de condor, tirando-o das mãos de um grupo de moleques que o haviam encontrado nas serras próximas de Catamarca e o estavam maltratando.

O rapazinho passou a tarde cuidando do filhote e por fim o deixou num ninho alto, improvisado na planta de tipa da casa do Victoriano Unzaga, e esqueceu do assunto.

No dia seguinte, uma ave enorme se aproximou e lhe disse que o pequeno condor que salvara era na realidade o filho caçula do Imperador dos Andes, um Inca que tinha conseguido fugir antes que os espanhóis chegassem perto do Macchu Picchu - lugar que os conquistadores, por fim, nunca conseguiram descobrir - e que, pelas trilhas estreitas que beiram a fronteira entre as cordilheiras e a grande floresta negra, tinham descido até os Vales Calchaquies e daí a Catamarca, que nessa época ainda era a terra dos Diagüitas. Contou que a herança incaica tinha ido se misturando com a dos Diagüitas e com a de outros povos, que tinham primeiro fugido do grande império indígena e mais tarde dos conquistadores espanhóis.

O Imperador dos Andes queria ver o bravo menino que tinha salvado seu filho, e agradecer-lhe a atenção. O fantástico condor abriu suas asas, assustando os guanacos e alpacas que pastavam por perto com a enorme envergadura de quase cinco metros; deixou que Samuel subisse em suas costas e levantou voo; através de suas artes de magia, a ave permitiu que ele pudesse respirar no ar rarefeito das montanhas, onde a finura do oxigêno produz fortes dores de cabeça e tonturas que só se curam com o chá de folhas cruas da coca.

Assim, o condor pôde levá-lo a uma viagem para conhecer o topo do mundo e o palácio do último Imperador Inca. Lá, o menino que depois de passados os anos viria a ser Dom Samuel, se encontrou com o imperador e com o seu filho, o pequeno condor, que agora estava transformado num forte e altivo príncipe.

Samuel ficou no palácio como hóspede de honra. Muitas festas - com carne de vicunha e lhama e sucos de milho, chicha morada e beterraba - foram feitas em sua homenagem. Assim foram se passando os meses e, embora ficasse feliz nas alturas andinas, Samuel começou a sentir saudades do seu vale natal e de seus familiares, e pediu para que o deixassem voltar. Ao partir, recebeu do príncipe inca um bau cheio de presentes, mas também ouviu a exigência de uma promessa que o filho do rei lhe apresentou antes de montar no condor para o retorno: que só o abrisse quando ficasse bem velho e de cabelos brancos.

Ao chegar a Catamarca, que ainda não se chamava San Fernando del Valle mas apenas "fortaleza da encosta", em quechua, Samuel não a reconheceu, pois estava tudo muito mudado. Ele não conseguiu reconhecer nenhuma das pessoas da cidade, e até os lugares já não eram mais os mesmos.

Começou a perguntar se ninguém conhecia um garoto chamado Samuel. E algumas pessoas lhe disseram que tinham ouvido falar de alguém com esse nome, que havia desaparecido nas serras do pé da cordilheira muitos anos atrás.

Samuel, depois de muito averiguar, acabou descobrindo que haviam passado quase setenta anos desde o dia em que ele havia decidido ir ao topo dos Andes, além dos Ojos del Salado, nas asas do grande condor.

Tomado de enorme tristeza, foi para a serra, na esperança de reencontrar o filhote do condor, mas, desesperado e confuso, acabou abrindo a caixa que o príncipe lhe havia presenteado na sua viagem à cordilheira.

De dentro do bau saiu então uma nuvem de fumaça branca, que o envolveu. Velhas cédulas de cruzeiros, patacones portugueses e doblones espanhóis pularam e se esparramaram de dentro da caixa. E de repente, o corpo de Samuel tornou-se velho e enrugado, nasceu-lhe uma rala barba branca e suas costas começaram a se curvar com o peso de tantos anos.

Voando baixo desde o fundo das montanhas veio então o condor novamente, e a voz doce e triste do príncipe ressoou na garganta do pássaro: "Samuel, eu disse bem claro para você não abrir a caixa. Nela estavam todos os segredos dos seus anos de vida!…".

A arca tinha a "eterna juventude" de Samuel, e o menino, sem saber seu valor, deixou-a ir-se para sempre.
 
JV, São Paulo, novembro de 2011.
Baseado num conto da tradição oral japonesa.

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