quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O "Cordobazo" e a Utopia.

Capítulo 21


Eu acordei confuso, pensando que ainda estava num sonho; sintia um formigamento na ponta dos dedos da mão esquerda, mas até pocas horas atrás  já nem podia lembrar onde estavam as mãos, e o que dizer dos dedos, então!
Era uma sensação estranha, depois de tanto tempo de absoluta insensibilidade e sem movimentos. Aos poucos, ouço as vozes das enfermeiras do primeiro turno e a do Dr. Gatica, como muito distantes, para fora do quarto e do corredor do hospital; minha cabeça está girando, e sinto que tenho um pouco de febre de novo.
A enfermeira sai enseguida, e o Careca Rafa me diz que essa noite as tropas de choque tentaram invadir novamente o Hospital das Clínicas e o Barrio Guemes. Também me conta que já foi formado o Governo Popular e dos Trabalhadores; e diz que ele e o Chacho Rubio estão encarregados de organizar a milícia, e que todos os grupos contribuíram generosamente com homens e com armas. E o mais importante: um comunicado do IIIº Corpo do Exército com comando em Córdoba -aprovado pelo próprio general Lanusse- reconheceu os três bolsões revolucionários.
- Uma das áreas liberadas é um  enclave vital, que concentra o bairro Guemes inteiro, o bairro do Clínicas, toda Nueva Córdoba e os bairros populares mais próximos ao campus da Cidade Universitária -  diz Juancito, que é um dos nove diretores do novo governo.


- Meu! na prática isso é o mesmo que reconhecer o novo poder emergente dos trabalhadores, o Poder Operário que está surgindo! - acrescenta, otimista e animado, como sempre, e Carlitos Fessia pisca un olho pro Careca Rafael, que não dá bola e continúa sério e concentrado, focado o pensamento nas poucas armas que conseguiram reunir até agora. 
- Dois anos atrás, o governo militar de Buenos Aires, já estava resignado a continuar agüentando os bolsões revolucionários em Córdoba, tentando deixá-los morrer pelo cansaço e pela falta de água, luz e gás, que ainda são regulados pelo governo central a partir de Villa Maria - me esclarece o Chacho.
  - Pois é. E finalmente ontem, após dois anos e meio de passado o Cordobazo, o Governo Popular foi terminado de definir -  acrescenta Juancito, e levanta os braços e olha para o céu como se estivesse agradecendo um milagre.

- Houve discussões eternas, intermináveis debates e muitas brigas, às vezes políticas ou ideologicas, outras tantas de tipo pessoal, e tudo em meio aos combates e escaramuças noturnas, e os bombardeios do exército que nos perseguiam, acossando-nos de dia e de noite - completa o Careca Rafa.
- Bem, finalmente, contra toda a lógica que nós aprendemos sobre insurreições e sobre a contra-insurgência, as tropas do governo  de repente pararam de atacar; e as nossas milícias que estavam exaustas, quase que aniquiladas e desarmadas, aproveitaram a oportunidade para diminuir o desgaste dos contra-ataques, e puderam finalmente fazer uma pausa para um descanso e para se reagrupar - disse Juancito.

- E quem está no Governo Popular? -  pergunto, sem ainda poder acreditar se eles estão me dizendo a verdade, ou se estão mentindo, ou se estou apenas sonhando.  - Olha, todos os grupos que estavam se formando, antes e depois Cordobazo, queriam colocar a colher e agarrar o comando - diz o Indio.

- Sim, entraram três dirigentes do Peronismo de Base, dois do Partido Revolucionario de los Trabajadores, dois do Partido Comunista, um do GRS e dois de El Obrero; e de Buenos Aires, veio o Israel Vilhas, de Orientación Socialista, mas no fim ficou só o Careca Rafa, que junto com o Gringo Mena e o Carlitos, formaram a primeira comissão de auto-defesa militar - diz Juan.
- E todos, menos o velho Israel e o Rafa,  são do sindicato de Luz y Fuerza, de Materfer e do SMATA.  Ah, sim!, além de dois troskos da Ters, que entraram pelos estudantes e um professor de arquitetura do PCR e uma docente de filosofia da VC - completa o relatório, detalhista, o Careca, novamente com um tom de cansaço e meio entediado de tanto contar a mesma história, mas eu já conheço o jeitão do Rafael e nem ligo mais.

Eu não posso acreditar: as vozes continuam chegando de longe, as imagens são apenas luzes ou sombras que se transparentam através das pálpebras, talvez porque o dia está claro. A verdade é que o que eles me dizem é tão fantástico que eu não estou convencido de que seja possível; é tudo verossímil, mas soa forçado: como é que os grupos políticos, tão definidos assim, entraram no governo popular se todos nasceram ou foram formados precisamente durante o Cordobazo?
E como pode ser que o exército, Lanusse  e Lopez Aufranc, e outros heróis da ditadura possam ter se conformado e tiveram que engulir uma zona liberada, quando as tropas de fato entraram ao centro de Córdoba às cinco horas da tarde desse 29 de maio de 1969?

- Mas é que eles, os milicos, entraram, sim, mas os grupos armados, liderados pelo povo do Peronismo de Base e do PRT com o Gringo Mena e Santucho à cabeça, já havia repartido algumas quantas metralhadoras pesadas, e os soldados recrutas das tropas estavam assustados, recuando ainda antes da meia noite do 29 de maio - me responde  à segunda das minhas perguntas, e me deixa que adivinhe sobre a primeira, e Juan se emociona até as lágrimas.
- Os combates na escuridão total permitiram  que os grupos de trabalhadores e estudantes capturassem mais armas pesadas, uns seis carros de patrulha da polícia, e até mesmo dois caminhões militares cheios de FAL que os soldados tinham largado quando viram os manifestantes chegando feito um maremoto. Muitos recrutas se dispersaram, mas muitos mais foram os que se somaram às barricadas e ocuparam três delegacias da polícia de Córdoba, o plantão central da polícia federal, e dois destacamentos da aeronáutica no centro. Os oficiais capturados em combates foram desarmados e liberados imediatamente, mas dois agentes de inteligência do SIDE e um milico de Coordenación Federal permaneceram como presioneiros na sede do sindicato de  Luz y Fuerza. Quando Lanusse quis contraatacaar no dia seguinte, já não tinha jeito, teve que negociar a libertação dos reféns em troca de uma trégua de 72 horas, o que foi suficiente para que pudéssemos entrar nos estúdios das rádios LV2 e LV3, e nas redações da Voz del Interior e chamássemos repórteres e diplomatas de todos os países representados em Córdoba - tem uma voz cada vez mais emotiva, fala bem alto, faz gestos e pulam as lágrimas dos olhos do Juancito.

- Bem, o fato é que a ONU enviou oito caminhões com alimentos e medicamentos, a Cruz Vermelha conseguiu entrar com uma dúzia de ambulâncias e tratar dos feridos, que eram mais de trezentos, e foi ai que a revolta popular  escapou por completo das mãos da ditadura - completa o Chacho Rubio.
Eu ainda não entendo muito do que me contam, mas sei que estou sonhando, e a febre me faz sair da cama, como que voando, e sinto que acordo e posso ver, da janela do quarto da clínica com vista para o Passeio Sobremonte, uma barricada alta de madeiras e arame farpado, e as heras, as samambaias do ar e outras plantas trepadeiras que subiram ao topo das varas, e agora o conjunto parece mais uma colina ou uma montanha luxuriante, verde e florida, que atravessa o Passeio, do prédio da Prefeitura até a Cañada.

Javier Villanueva olha para as barricadas e lembra-se de novo, obsessivamente, do medo que sentiu quando saiu pela primeira vez para uma ação de rua de Córdoba. Era junho de 1968 e os ecos do Maio de Paris chegavam até ele pelo entusiasmo de uma menina, Marilén, jovem militante de 19 anos, pioneira do CRSP, os Comandos da Resistência Armada Pampillón Santiago. E mesmo que ele quisesse impressioná-la, Javier não teve coragem suficiente para carregar as bombas molotov, e a deixou esperando por mais de meia hora na esquina da Duarte Quirós e Velez Sarsfield.

Finalmente, só sai do sonho das memórias quando volta a ouvir a voz profunda de Chacho Rubio, sentado ao pé de seu leito de doente: - E depois de passar meses sem lutar, com uma ou outra escaramuça dispersa de vez em quando, esquecidos pelo poder central de Buenos Aires, e lembrados vez ou outra ao longo do tempo pelos gestores do saneamento, ou pela EPEC de Villa Maria que eventualmente nos cortavam o abastecimento de água ou de energia elétrica, as organizações revolucionárias foram estruturando melhor os bolsões com os governos de auto-gestão das vizinhanças, armando e treinando diariamente os guardas das auto-defesas e a assistência sanitária, até finalmente chegar a um acordo e criar várias instâncias de um governo popular  -  diz o Rubio Camilion.

- Popular e dos trabalhadores - acrescentam e lhe corrigem, quase ao mesmo, Juan e o Careca Rafa. 
- Sim, tudo bem, mas e então, quais eram as outras áreas liberadas? - Javier lembra de ter ouvido falar de três ou quatro focos de insurreição.
- Três, apenas três no total: uma é a o do bairro Guemes, Clínicas, Cidade Universitária e Nueva Córdoba, e ainda outra sobre o Esquiú, cerca de seis quilômetros para o noroeste, na saída de Córdoba, como quem vai às Salinas, a caminho de Catamarca e Santiago -  completa Carlitos, cujos pais viviam bem por lá, ao norte de Alta Córdoba, perto da casa antiga de Javier, na rua Bedoya, por trás da ferrovia.

- E o outro enclave, um bolsão grande, estava entre Ferreyra, além dos Arcos de Córdoba e o Barrio Kronfuss, o primeiro bairro da classe operária da cidade - diz o Chacho Rubio, que havia trabalhado durante anos em cada porta de fábrica da região e conhecia a história do bairro inteiro, e de toda a vizinhança, até Malagueño.

- Sim, mas não demorou muito tempo até que um grupo de lumpens, jovens desempregados e ociosos, e um par de pequenas quadrilhas de delinquentes começou a provocar o comité de trabalhadores de Ferreyra, e acabou sendo expulso, formando uma colônia separada - comenta o Chacho, e eu me lembro de ter lido tempos depois que o governo dos trabalhadores perdeu vários bairros, que foram recuperados pelas tropas de Buenos Aires, só por causa desses jovens desempregados.

- Uma magnífica mansão neoclássica que havia sido reciclada para funcionar como um museu, foi ocupada pelos desempregados da vizinhança de Konfruss. Mas algum tempo depois do Cordobazo, o governo dos Trabalhadores e do Povo a expropriou para que fosse sua sede central, sem nada mudar a aparência original. É uma jóia arquitetónica que foi encomendada por Martín Ferreyra ao francês Paul Sanson, em 1914 e hoje representa, no bairro de Nueva Córdoba, o último remanescente do movimento revolucionário que surgiu com o povo de 29 maio de 1969, só alguns meses depois que nasci - ouço dizer a Raquel e sinto que vou acordando aos poucos, cercado por tubos e por dois enfermeiros ajudando a minha irmã a trocar meu pijama.

Leia mais em "Crônicas de Utopias e Amores, de Demônios e Heróis da Pátria", JV, 2006, São Paulo.

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